Quando eu vejo as narrativas , mesmo as narrativas chamadas antigas, do Ocidente , as mais antigas , elas sempre são datadas. Nas narrativas tradicionais do nosso povo , das nossas tribos , não tem data, é quando foi criado o fogo , é quando foi criada a Lua , quando nasceram as estrelas , quando nasceram as montanhas , quando nasceram os rios. Antes , antes, já existe uma memória puxando o sentido das coisas , relacionando o sentido dessa fundação do mundo com a vida , com o comportamento nosso, com aquilo que pode ser entendido como o jeito de viver. Esse jeito de viver que informa nossa arquitetura , nossa medicina , a nossa arte, as nossas músicas , nossos cantos. [...] Alguns anos atrás , quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos estava desenvolvida , com seus aviões , máquinas , computadores , mísseis , eu fique um pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo , que a memória ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tecnologia pesada, concreta . E que talvez a gente fosse um povo como a folha que cai. E que a nossa cultura, os nossos valores , fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza , derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita , bauxita , ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos , olham aquela montanha , cantam para ela , cantam para o rio... Mas o cientista olha o rio e calcula quanto megawatts ele vai produzir construindo uma hidrelétrica , uma barragem. Nós acampamos no mato , e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores , para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina , e você ouve, você repete muitas vezes esse canto , até você aprender. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele á verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali não tem música , a montanha não tem humor , e o rio não tem nome. É tudo coisa . Essa mesma cultura, essa mesma tradição , que transforma a natureza em coisa , ela transforma os eventos em datas , tem antes e depois.
-Krenak , Ailton. Antes , o mundo não existia. IN: Novaes , Adauto (ORG.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras , 1992.p. 202-3.